O Tao
Pedro Tornaghi
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A palavra Tao em chinês é composta pela soma de dois desenhos, um significa cabeça e o outro caminho. Cabeça remete a consciência e caminho a algo em movimento; e, consequentemente, a algo que se vai deixando para trás conforme se avança. Tao pode assim ser traduzido por uma “consciência dinâmica”, em evolução, ou uma consciência que vai se revelando durante o caminho.
Dessa maneira, um homem de Tao não almeja uma “iluminação” enquanto condição garantida, mas estar em contínuo processo de “revelação”. Para ele, verdades descobertas em curvas anteriores do caminho não se adequam inteiramente às novas questões que surgem estrada afora, faz-se preciso estar de olhos e poros abertos para que se possa descobrir, a cada instante, a sabedoria proveniente do próximo desafio. No caminho do Tao nunca cabe a acomodação de se achar que foi alcançado algum estado ideal de sabedoria, mas sempre dar novos passos para dentro do inédito momento presente com a percepção virgem, livre de qualquer pretensão de conhecimento, e o espírito aberto para aprender com a experiência.
Um mestre de Tao, assim, não é alguém que tenha chegado a um objetivo, mas alguém que saiu de uma zona de acomodação e colocou o pé na estrada, e se permite aprender durante a viagem. Mas, como se dá esse processo de aprendizagem?
Toda estrada possui duas margens. A do Tao não é diferente. Ela evolui entre uma margem esquerda e uma direita, uma onde o Sol nasce e outra onde ele morre, uma onde se respira uma atmosfera masculina e outra feminina. Caminhar conscientemente é avançar ciente dos eventos e possibilidades que surgem à sua direita e à sua esquerda; permanecer no Tao é não se deixar desviar por apelos que apareçam em uma ou outra margem; o homem de Tao é aquele que percebe todas as contradições da existência humana, mas caminha entre elas, dança com a dança da vida, com as curvas da estrada, mas permanece em seu itinerário, neutro entre os apelos que vão surgindo em ambas as margens.
Se estou sendo hermético, perdoem-me. Vamos devagar para retirar de nossa conversa mais lucidez que confusão, mais praticidade que abstração. Aliás, esse é o “caminho” da literatura oriental: afirmar em uma primeira frase ou parágrafo do livro, algo que pode ter significados múltiplos e em seguida desenvolver os significados que parecem relevantes ao autor no momento da escrita. Bem diferente da tradição ocidental de fazer um prefácio, apresentar os personagens aos poucos, descrever a situação, lugar, apresentar justificativas para a ação que se seguirá, desenvolver a situação até um impasse, resolver o impasse, e fechar o ciclo com um epílogo.
Em um texto oriental muitas vezes intuímos no início haver algo de precioso por trás daquelas palavras, sem conseguir distinguir exatamente “o quê”. E assim também é o início do contato com o Tao, há o pressentimento de haver ali um tesouro escondido, mas nem sempre é fácil identificar que tesouro é esse.
A primeira frase do Tao Te King, o livro de Lao Tsé emblemático do Taoísmo, diz: “O Tao que pode ser expresso em palavras não é o verdadeiro Tao”. Sim, o Tao não pode ser alcançado por especulações intelectuais – por mais sofisticadas que sejam – e quem tentar fazê-lo, estará fadado ao insucesso. A especulação intelectual é uma atitude “yang”, masculina, e pelo masculino é impossível chegar ao Tao. É preciso uma certa qualidade “yin”, feminina, de deixar-se fecundar pelo mistério do Tao, para compreendê-lo dentro de si. A fecundação é um processo estranho para o masculino, contrário à sua natureza e assim o intelecto é um recurso inapropriado para promover a compreensão do Tao.
Não é uma questão de conhecimento racional, mas de abrir os poros e o coração, e deixar-se arrebatar pela realidade sutil e mágica que está por trás de tudo. Deixar que o fundo de sua alma, vazio e silencioso, reflita clara e fidedignamente a existência à sua frente. O pensamento racional falha repetidamente ao tentar compreender e explicar o Tao.
Fritjof Capra quando escreveu “O Tao da Física” tentou simplificá-lo na equação yin + yang = Tao. O Tao não cabe em equações, e embora seja a coisa mais simples da existência, não se adapta com fidelidade a simplificações. O Tao não é, definitivamente, uma soma de yin com yang, mas o espaço neutro – que há – entre eles. O yin impulsiona a experiência em uma direção, o yang na oposta, o Tao está entre ambas as forças e neutro entre suas influências. Pela lógica é impossível realizá-lo. O caminho até ele pode ser por outra via acessível a nós, a sensibilidade.
O Tao é o princípio único que está por trás de tudo e que mantém todas as coisas interligadas e inter-relacionadas. É o que faz com que a existência não seja um caos, mas um cosmos, com que haja uma ordem por detrás dos diferentes corpos e diferentes acontecimentos. O Tao é a matéria dos cordões invisíveis que ligam todas as pequenas e as grandes existências do universo e orientam e orquestram a harmonia entre elas.
Assim, se o Tao está na essência de tudo, o caminho até ele não exclui nenhuma experiência, pelo contrário, qualquer acontecimento pode servir para revelar a inteligência que está por trás do acontecimento. O Tao é belo por que não exclui a vida para almejar a espiritualidade, pelo contrário, ele encara a vida, a deixa existir e busca o que há de lucidez na experiência, e não na negação dela.
Para descobrir a essência das coisas, é preciso penetrar nelas. E, quando se penetra nelas se percebe que dentro da escuridão há um tanto de luz, assim como dentro da luz há escuridão. Quando se entra em contato com a essência se percebe que o oposto dela também está ali presente. Assim, mesmo em um oceano de ignorância se pode reconhecer a presença da consciência, palpitando. A partir desse momento, qualquer experiência pode servir para acordar o discernimento e sabedoria mais profundos. A partir desse momento, qualquer aparente impasse em que a vida lhe jogue, servirá como porta de saída do estado de ignorância para o de sabedoria, qualquer aparente prisão servirá como ponte para a mais radical liberdade. O que antes se apresentava como fonte de infelicidade se tornará um bálsamo capaz de alimentar e estimular a seiva da árvore da sabedoria e da mais natural satisfação. Qualquer escuridão poderá servir como o breu de um laboratório fotográfico: para revelar a luz.
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Tao, Meditação e Respiração:
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