quinta-feira, 18 de setembro de 2014

“ Quando a pobreza e a ignorância te fazem bem

“A pobreza e a ignorância te fazem bem? Não?
Hum… não tenho tanta certeza assim…”

Milene Mizuta

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Estava pensando outro dia, sobre um assunto um tanto quanto delicado chamado propriedade intelectual.
Esse termo que surgiu logo após a idade média, veio atender a uma necessidade da época que era de controlar a autoria das ideias, “dar a Cézar o que é de Cezar”, reconhecer a autoria daquele trabalho, “dar nome aos bois”, e assim por diante.
Ainda funciona assim e eu confesso que me sinto um pouco tranquila quando crio algo ou lanço uma nova ideia no mundo, porque essa tal de propriedade intelectual me assegura o direito inclusive de um processo contra outrem que tenta, de forma descarada e desavergonhada, roubar minha ideia. O meu reconhecimento estará assegurado. Graças a Deus…
Graças a Deus? Sim, graças a Deus eu tive essa ideia, e aí começou minha confusão. A ideia é de quem afinal? Minha? De Deus? Surgiu de onde?
Voltando a Antroposofia – que todo mundo já está careca de saber que eu escolhi como caminho de vida – Steiner nos traz que as ideias nada mais são que inspirações divinas. Algo precisa nascer no mundo e o indivíduo que está conectado com seu propósito, que está trabalhando, que está criando, que está em busca, consegue de alguma forma se conectar com essa necessidade que precisa vir ao mundo.
Mas só isso não basta, essa ideia tem que se transformar de luz em fogo, e quem transforma luz em fogo é nosso coração. Essa ideia tem que passar pelo coração, queimar como fogo e nos movimentar para termos a coragem, o entusiasmo, o amor necessário para colocá-la no mundo.
Porque colocar uma ideia no mundo exige muito esforço, físico. Não estou falando de elucubrações mentais, estou falando de mão na massa, trabalho pesado, acordar cedo, dormir tarde, nada de tempo livre, estou falando de acertar e errar, de cair e levantar, estou falando de planeta terra, rigidez da matéria e desafios do dia a dia. Ponto final.
Pensar, sentir e agir, são atividades distintas, que se não estão conectadas não produzem algo com significado. Podemos ficar paralisados no mundo das ideias, sofrer demais com a dor dos nossos sentimentos ou transformar-nos em máquinas, fazendo todos os dias as mesmas coisas.
Pois bem, afinal, de que serve, para o que serve ou melhor para quem serve essa ideia?
Fiquei refletindo muito a respeito disso, dias, dias e dias.
E a primeira conclusão que cheguei é que buscamos ideias como uma fonte de sobrevivência, queremos uma ideia que nos assegure lastro financeiro para o resto da vida, queremos de alguma forma transformar essa ideia em fonte de renda vitalícia, queremos transformar ideias em dinheiro por medo de uma coisa chamada escassez.
Essa foi a primeira conclusão que cheguei, mas ainda assim me parecia que não era só isso.
E foi olhando o meu cotidiano que percebi que a coisa é muito pior.
A propriedade intelectual que eu cito no início do texto não me assegura somente minha subsistência, ela me dá muito mais que isso, ela me dá poder.
Uma boa ideia nos dá dinheiro e poder.
Para isso eu quero mantê-la sobre minha propriedade, porque mantendo essa ideia sobre minha propriedade eu consigo manter outros sobre minha propriedade, eu me transformo em alguém que é necessário, imprescindível, eu me transformo em dono de alguém.
E para que eu possa ser necessário, alguém tem que ter necessidade, ou seja, a escassez do outro é o que alimenta a minha abundância, ter em abundância me dá a possibilidade de doação, e doar me torna um ser admirável.
A minha ideia me transforma em alguém rico, poderoso, reconhecido e admirável.
Mas para que tudo isso aconteça, antes de tudo eu preciso de necessitados, eu preciso fomentar a dependência.
Eu preciso da minha ideia e da sua ignorância.
Quando a ignorância acaba, termina a dependência, quando a dependência acaba, acaba o salvador, quando o salvador acaba, surge o simples e mundano ser humano.
Dono de coisa nenhuma, vulnerável como qualquer um, com crises e medos.
Eu preciso de pobres para doar o meu dinheiro, preciso de ignorantes para mostrar meu conhecimento.
Como boa criadora que sou, percebi o seguinte, crio ideias fantásticas, coloco coisas incríveis no mundo, sou boa em estrutura, organizo muito bem, tenho visão de negócio, mas sou péssima em ensinar e formar pessoas que possam perpetuar minha ideia.
Coincidência? Gosto da justificativa de “esse não é meu talento”, gosto também da que diz assim “preciso tomar cuidado para que minha iniciativa não perca a identidade” tenho uma melhor ainda “estou no meio da vida preciso de dinheiro para sobreviver”, tudo isso é verdade, mas não mora aí minha dificuldade. Ela mora claramente no medo de que outros tenham mais talentos, tenho medo de perder minha identidade, tenho medo de perder meu poder, tenho medo de não sobreviver sem isso, essa é a mais pura verdade. Eu disse ali em cima, tirando tudo, sobra o Ser Humano, cá estou.
Então meus queridos, perguntem-se: a quem está servindo essa minha ideia? A Deus ou ao Diabo? Entenderam minha pergunta? Minha ideia serve ao bem ou ao mal?
Ela alimenta minha necessidade de reconhecimento? Ela alimenta meu prazer inenarrável de ouvir um: “obrigado você salvou minha vida”? Ela alimenta o meu status, o meu poder?
Se ela alimenta isso, você tem uma brilhante ideia que cria ignorantes e dependentes.
Já essa mesma ideia quando posta em liberdade, quando compartilhada, quando disseminada, pode fomentar indivíduos livres, verdadeiros.
Se as ideias não são suas, se elas são inspirações, como você pode se sentir no direito de ter propriedade sobre elas? Pergunte-se profundamente do que você tem medo?
Tem medo de passar fome? Trabalhe e isso não vai lhe acontecer. Tem medo de não ser reconhecido? Dê valor ao próximo e isso não vai lhe acontecer. Tem medo de não ter poder? Experimente soltar o controle da sua vida e aproveitar o caminho e você vai perceber que o poder é inútil. Tem medo de não ter mais o que doar? Experimente receber e se delicie com o sentimento de se sentir amparado.
Tornar sua ideia uma propriedade pode transformar você em dono de coisa alguma, pode alicerçar todos os seus valores em papéis que um dia se tornarão desnecessários. Copérnico nos mostrou o sistema heliocêntrico, isso mudou o mundo, mas Copérnico, continuou sendo só Copérnico. Einstein publicou a teoria da relatividade, mas continuou sendo só Einstein, gênios descobriram, doaram, e continuaram a levar suas vidas como seres humanos. Porque por mais que você faça, tudo que você vai continuar sendo é ser humano. Nada vai te colocar em um patamar diferente, nada vai te elevar a qualidade de Deus.
Nessa Terra, você não precisa ser Deus, liberte-se disso.
Até quando vamos precisar de pobres, excluídos, ignorados para nos inspirar? Eles não estão aí para isso, eles estão aí para nos ensinar, não se iluda, quem não tem nada vive com o simples, e o simples é o difícil de fazer.
Onde você está se colocando que se sente no direito de dizer a outra pessoa que ela precisa de você para algo? Quem você pensa que é? Essa é minha pergunta para você.
Se tudo que você é tem seu alicerce em meia dúzia de teorias, apostilas e enunciados, contas bancárias ou estoques, tenho até medo da sua vida. Se o que você criou não pode ser compartilhado, tenho medo da sua solidão, se você tem medo que roubem de você um lugar, te pergunto se esse lugar é realmente seu, ou se você não está querendo ocupar um espaço que não te pertence.
Percebo claramente que, se você pede uma ideia que possa monetizar sua conta bancária é porque certamente seus valores tem como alicerce o ter. Se sua ideia vai lhe servir como meio de reconhecimento, é possível que você não reconheça o trabalho de outros e tenha medo que façam o mesmo com você. Se sua ideia serve como forma de poder, você subjuga o outro. Se você precisa que sua ideia seja  uma fonte de dependência de outros para com você, está claro que você é dependente de alguém e não imagina outra forma de viver a vida senão em relações de dependência. Se você precisa que sua ideia seja reconhecida como algo que tira alguém da miséria e da ignorância, o que seria dela se a miséria e ignorância desaparecessem?
Cansei de pessoas, candidatos, gênios ganhando minha admiração com a miséria alheia, minha admiração agora vai para aqueles que lidam com a própria miséria, emocional ou não. Admiro aquele que ajuda o outro não porque tem piedade da dor alheia, mas porque tem dignidade suficiente para reconhecer que aquele próximo tem algo para lhe ensinar, e que na mais pura essência aquele que parece dar é o que recebe.
Gratidão é muito diferente de gratificação. Se você espera que aquele que você ajudou lhe agradeça o resto da vida com sua admiração por tudo que você fez, se você acredita que crianças adotadas devem ser eternamente gratas por esse gesto glorioso dos pais, que temos que demonstrar nossa obediência eterna por aquele que um dia nos deu a mão, que ter dedicado sua vida a uma causa faz de você uma autoridade em determinado assunto e espera ser visto assim,  você gosta de gratificação. Sugiro que você repense como seria sua vida, sem pobres, ignorantes e miseráveis, vai se surpreender como ela vai perder o sentido. E se não ficar envergonhado com isso, sugiro ainda que procure um terapeuta.
Robin Hood foi importantíssimo na sua época, mas hoje ele não serve mais, não precisamos tirar de nada para lugar algum, a Justiça dos tempos modernos é compreender com o coração que a igualdade do ser humano não é algo a ser conquistado com divisões, é algo a ser reconhecido, simples assim. Nada me faz diferente do outro, e por mais que ideias surjam a partir de mim, por mais dinheiro que eu movimente, por mais poder que eu tenha, na minha essência eu vou ser só, pura e simplesmente um ser humano, nem melhor, nem pior, só um ser humano. E isto já basta, aliás isso é só o que resta.
Nós “ideiadores” temos a responsabilidade de sermos o guardião daquela ideia, e isso significa sim, protege-la, cuidá-la, ter apreço e respeito por ela, e muitas vezes entrar em conflito com alguém que quer transformá-la em algo deturpado, mas sempre com a consciência de que a ideia não é sua e deve estar a serviço do mundo e não ao seu serviço, se ela vai salvar, monetizar, ser reconhecida, isso é somente uma consequência sobre a qual você não tem qualquer controle.
No dia em que pararmos de precisar da pobreza, ignorância e miséria do próximo vamos nos libertar do medo de passar fome, de não sermos reconhecidos, de não sermos prósperos, simplesmente porque se alguma coisa não é necessária no mundo ele deixa de existir, simples assim.
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