Ontem postei algumas fotos e hoje eu transcreverei um trecho do livro O Holocausto Brasileiro da escritora e Jornalista Daniela Arbex,recomendo a leitura mas já vou avisando que o livro é para quem tem muito estomago.
"O repórter luta contra o esquecimento. Transforma em palavra o que era silêncio.
Faz memória. Neste livro, Daniela Arbex devolve nome, história e identidade àqueles que, até então, eram registrados como “Ignorados de tal”. Eram um não ser. Pela narrativa, eles retornam, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque era epilético. Ou ainda Antônio Gomes da Silva, sem diagnóstico, que ficou vinte e um dos trinta e quatro anos de internação mudo porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava. São sobreviventes de um holocausto que atravessou a maior parte do século XX, vivido no Colônia, como é chamado o maior hospício do Brasil, na cidade mineira de Barbacena. Como pessoas, não mais como corpos sem palavras, eles, que foram chamados de “doidos”, denunciam a loucura dos “normais”.
As palavras sofrem com a banalização. Quando abusadas pelo nosso despudor, são roubadas de sentido. Holocausto é uma palavra assim. Em geral, soa como exagero quando aplicada a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra. Neste livro, porém, seu uso é preciso. Terrivelmente preciso. Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia. Tinham sido, a maioria,enfiadas nos vagões de um trem, internadas à força. Quando elas chegaram ao Colônia,suas cabeças foram raspadas, e as roupas, arrancadas. Perderam o nome, foram rebatizadas pelos funcionários, começaram e terminaram ali.
Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos,alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças.Homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina,dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos.
Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não alcançavam as manhãs.
Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezesseis pessoas
morriam a cada dia. Morriam de tudo — e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio do Colônia, na frente dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida.
Pelo menos trinta bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados. Este foi o destino de
Débora Aparecida Soares, nascida em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli Aparecida Resende,epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina. E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”. Só muito mais tarde, depois de adulta, Débora descobriria sua origem. Ao empreender uma jornada em busca da mãe, alcançou a insanidade da engrenagem que destruiu suas vidas.
Esta é a história que Daniela Arbex desvela, documenta e transforma em memória,neste livro-reportagem fundamental. Ao expor a anatomia do sistema, a repórter ilumina um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de funcionários e também da sociedade.
É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta.
Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios,esteve no Brasil e conheceu o Colônia. Em seguida, chamou uma coletiva de imprensa,na qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta”.
Quando começou a apurar a série de reportagens que marcariam o nascimento deste livro, Daniela descobriu-se diante de um impasse. Seu filho, Diego, tinha apenas quatro meses de vida. Ela tinha acabado de virar mãe, ainda amamentava e colocava-se, por
vontade própria, no parapeito do horror. A repórter sabia que mergulharia no inferno —e, de novo, aqui o inferno não é uma hipérbole. Sabia também que, no inferno, não há fim de expediente. Um repórter, quando faz bem o seu trabalho, é assinalado pelo que vive. A dor só vira palavra escrita depois de respirar dentro de cada um como pesadelo.
Como repórter experiente, que, pela qualidade de suas matérias, ganhou os principais prêmios nacionais e internacionais de jornalismo, Daniela sabia o que se estendia diante dela. E, mesmo assim, fez a sua escolha. E o filho? Diego se orgulharia dela.
Depois da série de reportagens publicada na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora,Daniela seguiu investigando. Viajava noventa e cinco quilômetros até Barbacena, todas as manhãs, e voltava à tarde, já exausta pelo que viu e ouviu, para iniciar a rotina no jornal. Entrevistou mais de cem pessoas, parte delas nunca tinha contado a sua história.
Além de sobreviventes do holocausto, Daniela escutou o testemunho de funcionários e de médicos. Um deles, Ronaldo Simões Coelho, ligou para ela meses atrás: “Meu tempo de validade está acabando. Não quero morrer sem ler seu livro”. No final dos anos 70, o psiquiatra havia denunciado o Colônia e reivindicado sua extinção: “O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma”. Perdeu o emprego.
Umas poucas vezes, os esqueletos do Colônia subiram à superfície. Passada a comoção pública, voltavam ao fundo empurrados pelas pedras de sempre. Em 1961, a rotina do hospício foi contada na revista O Cruzeiro, pelo fotógrafo Luiz Alfredo e pelo repórter José Franco. O título da matéria era: “A sucursal do inferno”. Em 1979, o repórter Hiram Firmino e a fotógrafa Jane Faria publicaram a reportagem “Os porões da loucura”, no Estado de Minas. O documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton,filmado em 1979, tornou-se um símbolo da luta antimanicomial.
No início dos anos 60, ao voltar para a redação de O Cruzeiro depois de conhecer a Colônia, o fotógrafo Luiz Alfredo desabafou com o chefe: “Aquilo não é um acidente, mas um assassinato em massa”. Apesar da denúncia estampada na revista de maior sucesso
Neste livro, Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil.
Agora, é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda não acabou."
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